A AFRONTA AO PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE NA ESFERA RECURSAL
As decisões judiciais de forma ampla, abrangendo as sentenças, decisões unipessoais e acórdãos, podem ser questionadas por diversos meios de impugnação, dentre eles os recursos (embargos de declaração, apelação, agravo de instrumento, agravo regimental, recurso especial e extraordinário etc.) e ações autônomas de impugnação (mandado de segurança, ação rescisória, querela nulitatis etc.).
Em primeiro plano, para que haja interesse recursal é imprescindível que tenha se verificado prejuízo à parte que pretende a reforma da decisão. Note-se que não há possibilidade de se interpor recurso, seja total ou parcial, na hipótese de a decisão ter sido benéfica ao recorrente em relação ao capítulo de sentença estritamente impugnado.
Em segundo plano, em havendo prejuízo à parte recorrente, é indispensável igualmente que a peça recursal evidencie a discussão que torne claro o desacerto da decisão judicial impugnada, já que se trata de um pressuposto intrínseco de admissibilidade do recurso aviado, na medida em que o recurso em que não se verifique o interesse recursal não merece ser conhecido, portanto, não deverá lograr êxito no seu processamento e futuro julgamento, seja no sentido do provimento ou não provimento.
Em contexto evidencia um importante princípio vigente no Ordenamento Jurídico Brasileiro, norteia o manejo dos recursos em geral, o princípio da dialeticidade recursal.
De acordo com este princípio, o recurso deve conter explicitamente as razões pelas quais o recorrente se descontentou com decisão, e mais, as razões de recurso devem ser claras ao impugnarem de fato a sentença de mérito (decisão unipessoal ou acórdão), afetando um ou mais de seus capítulos específicos.
Perceba-se que o princípio da dialeticidade recursal possui estrita relação com o interesse recursal, já definido em linhas anteriores, na medida em que não basta que a parte recorra de forma genérica de parte (ou todo) da decisão judicial que o tenha prejudicado, mas precisa apontar os fundamentos da decisão que, no seu ponto de vista, tenham sido equivocados, expondo os motivos adequados.
Nesse sentido, entende-se como dialética, de forma sintética, o método de se extrair conclusão por meio do confronto direto das argumentações contraditórias ao ponto que se pretende provar, não bastando a mera repetição dos argumentos já formulados na petição inicial, ou na contestação, para atender ao critério.
Notadamente no ramo das ciências jurídicas, o professor Fredie Didier Jr. elucida a aplicação do princípio em tela, ao citar trecho extraído do livro “Teoria Geral dos Recursos”, de Nelson Nery Jr.:
“A doutrina costuma mencionar a existência de um princípio da dialeticidade dos recursos. De acordo com este princípio, exige-se que todo recurso seja formulado por meio de petição pela qual a parte não apenas manifeste sua inconformidade com o ato judicial, mas, também e necessariamente, indique os motivos de fato e de direito pelos quais requer o novo julgamento da questão nele cogitada. Rigorosamente, não é um princípio: trata-se de exigência que decorre do princípio do contraditório, pois a exposição das razões de recorrer é indispensável para que a parte recorrida possa defender-se.”[1]
Sobre o tema, merece menção à lição de Daniel Amorin Assumpção Neves:
“O princípio do contraditório exige do recorrente a exposição de seus fundamentos recursais, indicando precisamente qual a injustiça ou ilegalidade da decisão impugnada. Essa exigência permite que o recurso tenha efetivamente uma característica dialética, por que somente diante dos argumentos do recorrente o recorrido poderá rebatê-los, o que fará nas contrarrazões recursais.”[2]
Ainda nesta esteira de raciocínio, leciona Flávio Cheim Jorge que “a violação do princípio da dialeticidade fará com que o recurso não seja admitido por falta de regularidade formal”[3].
Assim, o recurso não pode apenas reiterar as razões já apresentadas na petição inicial, ou mesmo durante o decorrer da instrução processual, mas sim deve promover a discussão dos fundamentos que levaram o juízo recorrido a julgar neste ou naquele sentido, portanto, tendo sempre como foco principal a decisão proferida, apresentando os motivos pelos quais decisum estaria em desconformidade com o Ordenamento Jurídico e, só aí, estará passível de ser reformada ou invalidada.
A impugnação do ato decisório não pode ser jamais feita de forma completamente básica e genérica, não enfrentando em momento nenhum os argumentos apresentados pelo juiz de primeiro grau de jurisdição, ou seja, não será admitido o recurso que lance mão dos mesmos os argumentos já presentes nos autos e já verificados no decorrer da instrução processual, portanto, tratando-se de teses já superadas.
Em que pese a dialeticidade na esfera recursal possuir raízes civilistas, considera-se tal instituto integralmente aplicável ao Direito do Trabalho, como esclarecem os Tribunais:
“VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE. A inobservância do princípio da dialeticidade, positivado no artigo 1.010, II do CPC, não se conhece do recurso, por clara ausência de pressuposto extrínseco de admissibilidade.”[4]
“PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE. A inobservância do princípio da dialeticidade incorre no não conhecimento do recurso da reclamada, por clara ausência de pressuposto extrínseco de admissibilidade. Inteligência da Súmula 51 deste TRT.”[5]
“AGRAVO REGIMENTAL. NÃO CONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE. A inobservância do princípio da dialeticidade, positivado no artigo 1.021, § 1º, do CPC/2015, incorre no não conhecimento do recurso, por clara ausência de pressuposto extrínseco de admissibilidade.”[6]
Por fim, cabe fazer menção à ementa de acórdão prolatado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (RJ), nos autos do Recurso Ordinário nº. 0100212-09.2022.5.01.0421:
“RECURSO ORDINÁRIO. AUSÊNCIA DE DIALETICIDADE. NÃO CONHECIMENTO. Compete à recorrente impugnar especificamente os fundamentos de fato e de direito que constituem o substrato da tese adotada pela decisão judicial que se busca reformar. Verificando-se que as razões recursais não produzem antítese satisfatória à declaração sentencial, limitando-se à renovação dos mesmos argumentos utilizados na inicial, o recurso não merece conhecimento.”[7]
Nos fundamentos do acórdão acima, assim se manifestou a Nona Turma do TRT da 1ª Região:
O inciso III do artigo 932 do CPC impede o conhecimento de recurso que não tenha impugnado especificamente os fundamentos da decisão recorrida.
Assim, compete à recorrente impugnar especificamente os fundamentos de fato e de direito que constituem o substrato da tese adotada pela decisão judicial que se busca reformar.
No caso em análise, observa-se que o recurso se limita à repetição dos mesmos argumentos apresentados na petição inicial, sem oferecer uma refutação específica aos fundamentos da sentença. Portanto, falta ao recurso a dialeticidade necessária para confrontar as razões que levaram à decisão proferida.
Desta forma, deixo de conhecer do recurso.
Por fim, o órgão julgador não pode olvidar da aplicação desse princípio, já que no âmbito recursal também se aplica o princípio da adstrição, segundo o qual na atividade de julgar o Estado-Juiz não pode transcender ao objeto da pretensão, seja ela aquela formulada na petição inicial, seja aquela veicula no bojo do recurso interposto em face de determinada petição inicial.
O princípio é tipificado no art. 492 do Código de Processo Civil:
Art. 492. É vedado ao juiz proferir decisão de natureza diversa da pedida, bem como condenar a parte em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado.
A jurisprudência, por sua vez, se posicionou no sentido da aplicação do princípio da adstrição na fase recursal por aplicação analógica:
“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA. MANDATO. SUCESSÃO. INCORPORADORA. VALIDADE. CONTRATO. PRORROGAÇÃO. RESCISÃO UNILATERAL. PRINCÍPIO DA ADSTRIÇÃO. VIOLAÇÃO. NULIDADE. RECONHECIMENTO. 1. Se a incorporadora assume expressamente, na qualidade de sucessora, todos os direitos e obrigações da sociedade incorporada, o mandato validamente outorgado continua vigendo até que haja revogação expressa. Precedentes. 2. Segundo o princípio da adstrição, o provimento judicial deve ter como balizas o pedido e a causa de pedir. Sob essa perspectiva, o juiz não pode decidir com fundamento em fato não alegado, sob pena de comprometer o contraditório, impondo ao vencido resultado não requerido, do qual não se defendeu. 3. A Corte local, ao inovar no julgamento da apelação, trazendo a afirmação de que o contrato ajustado entre as partes era de agência, cerceou o direito de defesa do réu, impondo-lhe as consequências previstas pela Lei nº 4.886/1965 para a rescisão imotivada do contrato de representação comercial sem que houvesse requerimento da autora e sem possibilidade de apresentar argumentos ou produzir provas em sentido contrário. 4. Recurso especial provido.”[8]
Feitas as considerações pertinentes, caso se verifique que o recorrente não impugnou especificamente as razões da decisão recorrida, apenas fundamenta sua insurgência em razões dissociadas ao ato decisório, esta questão, certamente, obstaculiza o conhecimento do recurso, eis que ausente regularidade formal, pela afronta ao princípio da dialeticidade no âmbito recursal, o que implica na ausência de pressuposto extrínseco de admissibilidade.
O efeito do descumprimento desse pressuposto recursal é o não conhecimento do presente recurso, sob o preceito do artigo 932, inciso III do vigente Código de Processo Civil, aplicável à Justiça Especializa do Trabalho por inteligência do art. 769 da Consolidação das Leis do Trabalho, além da cláusula prevista no art. 15 do Código de Processo Civil.
Velbert Medeiros de Paula
REFERÊNCIAS:
[1] DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil, Meios de Impugnação às decisões judiciais e Processos nos Tribunais, Volume 3. Salvador: Editora Juspodivm, 8ª Edição, 2010.
[2] NEVES, Daniel de Assumpção Amorim. Manual de Direito Processual Civil. Salvador: Editora Juspodivm, 12ª ed., 2020.
[3] JORGE, Flavio Cheim. Teoria Geral dos Recursos Cíveis. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
[4] TRT-1 – AP: 01010353320165010246 RJ, Relator: GUSTAVO TADEU ALKMIM, Data de Julgamento: 31/08/2021, Primeira Turma, Data de Publicação: 18/09/2021.
[5] TRT-1 – RO: 01007679120205010034 RJ, Relator: ALVARO LUIZ CARVALHO MOREIRA, Data de Julgamento: 19/04/2021, Quarta Turma, Data de Publicação: 28/04/2021.
[6] TRT-1 – MS: 01045353020205010000 RJ, Relator: CARLOS HENRIQUE CHERNICHARO, Data de Julgamento: 16/09/2021, SEDI-2, Data de Publicação: 29/09/2021.
[7] TRT-1 – RO: 0100212-09.2022.5.01.0421 RJ, Relator: RILDO ALBUQUERQUE MOUSINHO DE BRITO, Data de Julgamento: 22.05.2024, Data de Publicação 29/05/2024.
[8] Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.641.446/PI (2016/0190366-0). Terceira Turma. Ministro Relator Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento em 14.03.2017. Publicado em 21.03.2017.