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Lançamento complementar de IPTU em Campos

por Velbert Medeiros

 

Como é cediço, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) contempla como espécies de tributos os impostos, taxas, contribuições de melhoria, os empréstimos compulsórios e as contribuições especiais, estas subdividas em contribuição de interesse de categoria profissional ou econômica, contribuição de intervenção no domínio econômico e contribuições sociais, ambas com espeque no artigo 149 da CRFB/88[1], além da contribuição para o custeio de serviços de iluminação pública, prevista no artigo 149-A da CRFB/88[2], formando assim a teoria pentapartida, defendida, dentre tantos doutrinadores, por Hugo de Brito Machado, Ives Gandra da Silva Martins, Kiyoshi Harada, Sérgio Pinto Martins e Eduardo de Moraes Sabbag.

O objeto da presente análise está dentre as espécies tributárias vigentes, sendo o imposto predial territorial urbano (IPTU), que é tributo de competência exclusiva dos Municípios, assim como disposto expressamente no artigo 151, inciso I da CRFB/88, mais especificamente no que tange à tributação das edificações, já que o espécie tributária em tela tem como fatos geradores tanto a propriedade territorial, portanto, sem construções com espaço útil sobre o terreno, quanto à propriedade predial, que se relacionam às construções propriamente ditas.

Nesse contexto, vale lembrar que o IPTU é um imposto incidente sobre o patrimônio, diversamente de outros tributos que incidem sobre renda (IRPF e IRPJ, p. ex.), consumo (ICMS, p. ex), serviços (ISSQN, p. ex.), dentre outras diversas formas de manifestações riqueza, que são pressupostos para o exercício da exação tributária.

À guisa de ilustração, a tributação do patrimônio possui lugar de destaque na experiência tributária brasileira, já que o primeiro tributo instituído em solo brasileiro sobre imóveis urbanos se deu em 1.809, que tratava da transmissão de bens imóveis inter vivos, denominado à época de “Sisa”, o que após grandes mudanças nos regimes tributários subsequentes, veio a gerar a ramificação da competência tributária, conforme fatos geradores associados à relação de aquisição de propriedade sobre bens imóveis, entre União (Imposto Territorial Rural – ITR), Estados (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis ou Doação – ITCMD) e Município (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis – ITBI e Impostos Predial e Territorial Urbano – IPTU) com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Analisando o fenômeno legal da incidência tributária, para se aprofundar no regime do tributo em pesquisa, cabe mencionar que é subdividido pela doutrina pátria em dois momentos, o antecedente, que traduz abstratamente a situação fática de possível ocorrência e de importância para o Direito Tributário, e o consequente, que revela o tratamento jurídico dado à materialização da hipótese de incidência.

Sobre o assunto, o professor Ricardo Lobo Torres preleciona:

A expressão fato gerador deve ser reservada ao antecedente da regra de incidência, isto é, à descrição ou à definição da situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária, que abrange o objeto, o sujeito e o tempo do fato gerador. Corresponde ao que os alemães de Tatbestand. A regra de incidência contém ainda o consequente, ou seja, a estatuição do dever de pagar o tributo, representada pelos dados quantitativos, geralmente base de cálculo e alíquota. Os alemães se referem à Rechtsfolge.[3]

 

Sistematizando a RMIT, a doutrina aloca no antecedente a análise dos aspectos material, temporal e espacial do fato gerador da obrigação tributária, e ao consequente, a desnudamento de seus aspectos pessoal e quantitativo.[4]

O IPTU, por excelência, é um imposto pouco complexo quanto à verificação da prescrição geral e abstrata do fato imponível, o que se dá no antecedente da norma, de vez que o aspecto material do IPTU é a constatação de propriedade, domínio útil ou posse, por natureza ou acessão física, de acordo com o artigo 32 do Código Tributário Nacional, em relação a imóveis, terrenos puramente (territorial), ou ainda as edificações sobre o solo (predial), estabelecida no âmbito do Município (critério espacial) e verificada anualmente (critério temporal), em data fixada pela lei de cada ente, geralmente 1º de janeiro de cada Exercício.

Todavia, para a presente reflexão, merece ser destacado que o IPTU, assim como o IPVA, ITR, dentre outros, se enquadra no conceito de “tributos lançados por certo período de tempo”, trazido pelo artigo 144, §2º do Código Tributário Nacional, que demanda a fixação de uma data específica para que, por ficção, seja estabelecido o fato gerador.

De bom tom o exame do aludido dispositivo legal:

Art. 144. O lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada.

  • 1º. Aplica-se ao lançamento a legislação que, posteriormente à ocorrência do fato gerador da obrigação, tenha instituído novos critérios de apuração ou processos de fiscalização, ampliado os poderes de investigação das autoridades administrativas, ou outorgado ao crédito maiores garantias ou privilégios, exceto, neste último caso, para o efeito de atribuir responsabilidade tributária a terceiros.
  • 2º. O disposto neste artigo não se aplica aos impostos lançados por períodos certos de tempo, desde que a respectiva lei fixe expressamente a data em que o fato gerador se considera ocorrido.

 

Quanto ao consequente, a primeira faceta diz respeito ao aspecto pessoal, onde não há dúvidas de que a sujeição passiva fica a cargo do proprietário ou detentor de domínio útil ou posse, e o Município assume o posto de sujeito ativo, cabendo análise detalhada da segunda faceta, que é o aspecto quantitativo do tributo.

A doutrina pátria ramifica o critério quantitativo em base de cálculo, que é a grandeza econômica sobre a qual será aplicada a alíquota, a fim de se obter o quantum devido a título de tributo, e alíquota, que é justamente a porção que se extrai daquele fato que demonstra manifestação de riqueza pelo sujeito passivo.

Quanto às alíquotas, não há muitas digressões, já que podem variar de acordo com cada Município, possuindo o teto máximo de 15% (quinze por cento), conforme o “Estatuto das Cidades” (Lei nº. 10.257/2000), sendo suscetível à progressividade de alíquotas em razão do valor do imóvel (art. 156, §1º, inciso I da CRFB/88), diferenciação de alíquotas em razão do local e uso do bem (art. 156, §1º, inciso II da CRFB/88) e, ainda, a estipulação de alíquotas progressivas no tempo, em razão do desatendimento da função social da propriedade (art. 182, §4º, inciso II da CRFB/88).

Entretanto, há muita celeuma em relação aos critérios adotados pelas administrações públicas para o estabelecimento da base cálculo, já que o Código Tributário Nacional, em seu artigo 33, estabelece que a base de cálculo é o valo venal do imóvel, in verbis:

Art. 33. A base do cálculo do imposto é o valor venal do imóvel.

Parágrafo único. Na determinação da base de cálculo, não se considera o valor dos bens móveis mantidos, em caráter permanente ou temporário, no imóvel, para efeito de sua utilização, exploração, aformoseamento ou comodidade.

 

Como base no que determina o dispositivo legal acima, não serão levados em consideração para o cômputo do valor venal os bens móveis que guarneçam o imóvel.

Nesse sentido, o valor venal é obtido por meio de análise a partir do cadastro do imóvel, que aplicado a uma série de fatores constantes da Planta Genérica de Valores (PGV), como, por exemplo, área construída, valor do metro quadrado da construção, fato de obsolescência etc., chega-se ao valor razoável de mercado (valor venal), sob o qual incidirá a respectiva alíquota.

Feita a abordagem do regime jurídico básico do IPTU, com atenção aos fatores pertinentes ao caso em exame, impende registrar que após a apuração do quantum devido, a constituição do crédito tributário deverá ser feita por meio de lançamento de ofício, que é justamente a modalidade de lançamento em que a Administração Pública não depende da conduta do sujeito passivo para chegar ao montante devido e deflagrar a exação tributária.

Nesse particular, impende registrar que há jurisprudência cristalizada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a notificação do sujeito passivo do IPTU deve ser feita por meio da expedição do respectivo carnê, como se pode verificar a partir do Enunciado nº. 397 da Súmula de Jurisprudência Dominante desse Egrégio Tribunal, in verbis:

O contribuinte do IPTU é notificado do lançamento pelo envio do carnê ao seu endereço.[5]

 

Em recente publicação em Diário Oficial, a Secretaria Municipal de Fazenda de Campos dos Goytacazes, editou a Portaria 029/2021, em que acabou por promover lançamento complementar do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) dos exercícios 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021, em face da divergência identificada entre as informações constantes no cadastro imobiliário municipal e os dados do imóvel.

Ocorre que o referido texto afronta diversos princípios e normas afetos ao direito tributário, principalmente, no que diz respeito à forma de notificação do sujeito passivo prevista de forma pacífica no seio do Superior Tribunal de Justiça.

Em princípio, conforme o Código Tributário Nacional, especificamente seu artigo 145, há possibilidade de ser efetuar a correção do lançamento, por inciativa de ofício da autoridade administrativa, in verbis:

Art. 145. O lançamento regularmente notificado ao sujeito passivo só pode ser alterado em virtude de:

I – impugnação do sujeito passivo;

II – recurso de ofício;

III – iniciativa de ofício da autoridade administrativa, nos casos previstos no artigo 149.

 

Essa alteração do lançamento de ofício não pode se feita de forma indiscriminada, de vez que há hipóteses taxativas previstas no próprio Código Tributário Nacional, especificamente em seu artigo 149, valendo o destaque do inciso IV, que se amolda justamente ao texto da portaria em análise, in verbis:

Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos:

[…]

IV – quando se comprove falsidade, erro ou omissão quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória;

 

Vale registrar, que o dispositivo legal acima mencionado deflagra algo fundamental que não pode ser olvidada na interpretação do texto legal, que é justamente a parte em que estabelece que a omissão de informação de elementos definidos pela legislação tributária como sendo de declaração compulsória deve ser comprovada pela autoridade administrativa.

No caso da Portaria 029/2021, da Secretaria Municipal de Fazenda de Campos dos Goytacazes, ao promover o lançamento complementar do IPTU, salta aos olhos que o dispositivo legal não fora obedecido, já que há presunção de que houve omissão do sujeito passivo na atualização dos dados do imóvel cadastrado junto ao Município, que a Administração Pública entende repercutir desde o ano de 2016, o que foge à lógica e ao bom senso, ferindo os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, todos de matriz constitucional.

Nesse particular, percebe-se que o Município cuidou de adotar procedimento tendencioso e desleal para com os contribuintes do tributo, já que, premeditadamente, visando tão somente a finalidade arrecadatória, adotou a cobranças dos Exercícios de 2016 a 2021, prevalecendo-se das benesses da prescrição diferenciada prevista no artigo 173, inciso I do Código Tributário Nacional

Art. 173. O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados:

I – do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado;.

 

Assim, mesmo cobrando em 2021 o Exercício de 2016, para a legislação tributária, o marco prescricional nasceria no primeiro de janeiro de 2017, que seria justamente o primeiro dia do exercício subsequente àquele que o lançamento deveria ter sido deflagrado, estendendo-se o marco final prescricional para primeiro de janeiro de 2022.

Essa estratégia corriqueira no âmbito das administrações fazendárias demonstra que a notificação complementar impõe pesado ônus aos contribuintes, obrigando-os a tomar ciência por veículo não autorizado no âmbito do Direito Tributário, gerando presunção de cometimento de ilícito tributário, revelando-se uma medida totalmente desarrazoada.

Há que se destacar, que a forma de notificação do sujeito passivo determinada na portaria em xeque, qual seja, a notificação por publicação em Diário Oficial fere de pronto a Súmula 397 do Superior tribunal de Justiça, que determina a emissão de carnê ao sujeito passivo como meio legítimo para notificação do sujeito passivo quanto ao crédito tributário surgido.

Da forma como previsto na portaria, com toda a certeza, diversos contribuintes regulares do tributo deverão amargar com a perda de prazo, seja para adimplemento da obrigação tributária, ou para o manejo de impugnação administrativa, de vez que além de incomum, é determinada outra forma para a constituição do crédito tributário desse tributo específico (IPTU).

Assim, pode-se afirmar que norma em testilha viola de pronto os princípios constitucionais do devido processo legal (art. 5º, inciso LIV da CRFB/88), do contraditório e ampla defesa (art. 5º, inciso LV da CRFB/88).

Por fim, caso haja instauração de processo administrativo para se apurar as supostas irregularidades apuradas pela Fazenda Municipal, na ocasião de apresentação de impugnação do ato administrativo pelo sujeito passivo, impende registrar que não há lastro para a inversão de ônus da prova em favor da Administração Pública.

Esse aspecto do processo administrativo tributário é pacífico, de vez que a omissão de informações é enxergada pela legislação como manobra evasiva, e, portanto, configuradora de ilícito tributário.

E como todo ilícito, a parte que alega atrai para si o onus probandi quanto ao fato ilícito imputado.

Nesse particular, merece menção à brilhante lição do professor Hugo de Brito Machado:

O desconhecimento da teoria da prova, ou a ideologia autoritária, tem levado alguns a afirmarem que no processo administrativo fiscal o ônus da prova é do contribuinte. Isso não é, nem poderia ser correto em um estado de Direito democrático. O ônus da prova no processo administrativo fiscal é regulado pelos princípios fundamentais da teoria da prova, expressos, aliás, pelo Código de Processo Civil, cujas normas são aplicáveis ao processo administrativo fiscal. No processo administrativo fiscal para apuração e exigência do crédito tributário, ou procedimento administrativo de lançamento tributário, autor é o Fisco. A ele, portanto, incumbe o ônus de provar a ocorrência do fato gerador.[6]

 

E tal regra se aplica como luva ao caso da portaria em análise, pois como se poderia exigir do sujeito passivo que demonstre que não deixou de atualizar os dados de imóvel no cadastro mantido pela Secretaria de Fazenda?

Trata-se de claramente de prova de fato negativo (prova diabólica), cuja exigência de comprovação é afastada pelo direito processual vigente.

Ademais, como a Administração Pública poderia determinar o momento da omissão da declaração, levando em consideração que estabeleceu o marco de 2016 para cobrar a complementação, sem qualquer respaldo claro na norma jurídica que veiculou a obrigação?

Salta aos os olhos que a exação levada a efeito está eivada de vícios que obrigam a nulidade dos lançamentos.

O caso do lançamento complementar do IPTU pelo Município de Campos dos Goytacazes é um exemplo claro de como tem se fortalecido na atualidade a figura do Estado-Arrecadatório em detrimento do Estado de Direito, de vez que a parcela do poder colocada à disposição dos Três Poderes, sobretudo, da Administração Pública, tem servido ao locupletamento sem justo motivo, sem observar os nortes dos direitos fundamentais dos cidadãos consagrados preliminarmente na Carta Magna, como núcleo intangível pelos desmandos do Estado, e para que se tenha em vista que este deve ser estruturado de modo a preservar e promover essas prerrogativas, não o contrário.

O ilustre jurista Georg Jellinek, em discurso célebre acerca do uso legítimo do poder de polícia pela Administração Pública, em um simpósio sobre o Direito de Polícia, em 1791 da França, em que defendia veementemente a necessidade de eclosão do Estado de Direito em detrimento do Estado de Polícia, muito bem resumiu a grande desproporcionalidade que permeia os atos da Administração Pública:

“Não se abatem pardais disparando canhões”

[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 14/07/2021.

[2] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 149-A Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no art. 150, I e III. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 14/07/2021.

[3] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 12 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. P. 243-245.

[4] TORRES, Ricardo Lobo. Op. Cit. P. 248-256.

[5] Superior Tribunal de Justiça. SÚMULA 397, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/09/2009, DJe 07/10/2009.

[6] MACHADO, Hugo de Brito. Mandado de segurança em matéria tributária. São Paulo: Dialética, 2003. P. 272.

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